domingo, 24 de março de 2013

Atividade de Português - 2º Ano (Profª Veronica)

Faça a leitura do texto abaixo.

Noite de Almirante (Machado de Assis
 
Deolindo Venta-Grande (era uma alcunha de bordo) saiu do arsenal de marinha e enfiou pela rua de Bragança. Batiam três horas da tarde. Era a fina flor dos marujos e, de mais, levava um grande ar de felicidade nos olhos. A corveta dele voltou de uma longa viagem de instrução, e Deolindo veio à terra tão depressa alcançou licença. Os companheiros disseram-lhe, rindo:
- Ah! Venta-Grande! Que noite de almirante vai você passar! ceia, viola e os braços de Genoveva. Colozinho de Genoveva...
Deolindo sorriu. Era assim mesmo, uma noite de almirante, como eles dizem, uma dessas grandes noites de almirante que o esperava em terra. Começara a paixão três meses antes de sair a corveta. Chamava-se Genoveva, caboclinha de vinte anos, esperta, olho negro e atrevido. Encontraram-se em casa de terceiro e ficaram morrendo um pelo outro, a tal ponto que estiveram prestes a dar uma cabeçada, ele deixaria o serviço e ela o acompanharia para a vila mais recôndita do interior.
A velha Inácia, que morava com ela, dissuadiu-os disso; Deolindo não teve remédio senão seguir em viagem de instrução. Eram oito ou dez meses de ausência. Como fiança recíproca, entenderam dever fazer um juramento de fidelidade.
- Juro por Deus que está no céu. E você?
- Eu também.
- Diz direito.
- Juro por Deus que está no céu; a luz me falte na hora da morte.
Estava celebrado o contrato. Não havia descrer da sinceridade de ambos; ela chorava doidamente, ele mordia o beiço para dissimular. Afinal separaram-se, Genoveva foi ver sair a corveta e voltou para casa com um tal aperto no coração que parecia que "lhe ia dar uma coisa". Não lhe deu nada, felizmente; os dias foram passando, as semanas, os meses, dez meses, ao cabo dos quais, a corveta tornou e Deolindo com ela.
Lá vai ele agora, pela rua de Bragança, Prainha e Saúde, até ao princípio da Gamboa, onde mora Genoveva. A casa é uma rotulazinha escura, portal rachado do sol, passando o cemitério dos Ingleses; lá deve estar Genoveva, debruçada à janela, esperando por ele. Deolindo prepara uma palavra que lhe diga. Já formulou esta: "Jurei e cumpri", mas procura outra melhor. Ao mesmo tempo lembra as mulheres que viu por esse mundo de Cristo, italianas, marselhesas ou turcas, muitas delas bonitas, ou que lhe pareciam tais. Concorda que nem todas seriam para os beiços dele, mas algumas eram, e nem por isso fez caso de nenhuma. Só pensava em Genoveva. A mesma casinha dela, tão pequenina, e a mobília de pé quebrado, tudo velho e pouco, isso mesmo lhe lembrava diante dos palácios de outras terras. Foi à custa de muita economia que comprou em Trieste um par de brincos, que leva agora no bolso com algumas bugigangas. E ela que lhe guardaria? Pode ser que um lenço marcado com o nome dele e uma âncora na ponta, porque ela sabia marcar muito bem. Nisto chegou à Gamboa, passou o cemitério e deu com a casa fechada. Bateu, falou-lhe uma voz conhecida, a da velha Inácia, que veio abrir-lhe a porta com grandes exclamações de prazer. Deolindo, impaciente, perguntou por Genoveva.
- Não me fale nessa maluca, arremeteu a velha. Estou bem satisfeita com o conselho que lhe dei. Olhe lá se fugisse. Estava agora como o lindo amor.
- Mas que foi? que foi?
A velha disse-lhe que descansasse, que não era nada, uma dessas coisas que aparecem na vida; não valia a pena zangar-se. Genoveva andava com a cabeça virada...
- Mas virada por quê?
- Está com um mascate, José Diogo. Conheceu José Diogo, mascate de fazendas? Está com ele. Não imagina a paixão que eles têm um pelo outro. Ela então anda maluca. Foi o motivo da nossa briga. José Diogo não me saía da porta; eram conversas e mais conversas, até que eu um dia disse que não queria a minha casa difamada. Ah! meu pai do céu! foi um dia de juízo. Genoveva investiu para mim com uns olhos deste tamanho, dizendo que nunca difamou ninguém e não precisava de esmolas. Que esmolas, Genoveva? O que digo é que não quero esses cochichos à porta, desde as aves-marias... Dois dias depois estava mudada e brigada comigo.
- Onde mora ela?
- Na praia Formosa, antes de chegar à pedreira, uma rótula pintada de novo.
Deolindo não quis ouvir mais nada. A velha Inácia, um tanto arrependida, ainda lhe deu avisos de prudência, mas ele não os escutou e foi andando. Deixo de notar o que pensou em todo o caminho; não pensou nada. As idéias marinhavam-lhe no cérebro, como em hora de temporal, no meio de uma confusão de ventos e apitos. Entre elas rutilou a faca de bordo, ensangüentada e vingadora. Tinha passado a Gamboa, o Saco do Alferes, entrara na praia Formosa. Não sabia o número de casa, mas era perto da pedreira, pintada de novo, e com auxílio da vizinhança poderia achá-la. Não contou com o acaso que pegou de Genoveva e fê-la sentar à janela, cosendo, no momento em que Deolindo ia passando. Ele conheceu-a e parou; ela, vendo o vulto de um homem, levantou os olhos e deu com o marujo.
- Que é isso? exclamou espantada. Quando chegou? Entre, seu Deolindo.
E, levantando-se, abriu a rótula e fê-lo entrar. Qualquer outro homem ficaria alvoroçado de esperanças, tão francas eram as maneiras da rapariga; podia ser que a velha se enganasse ou mentisse; podia ser mesmo que a cantiga do mascate estivesse acabada. Tudo isso lhe passou pela cabeça, sem a forma precisa do raciocínio ou da reflexão, mas em tumulto e rápido. Genoveva deixou a porta aberta, fê-lo sentar-se, pediu-lhe notícias da viagem e achou-o mais gordo; nenhuma comoção nem intimidade. Deolindo perdeu a última esperança. Em falta de faca, bastavam-lhe as mãos para estrangular Genoveva, que era um pedacinho de gente, e durante os primeiros minutos não pensou em outra coisa.
- Sei tudo, disse ele.
- Quem lhe contou?
Deolindo levantou os ombros.
- Fosse quem fosse, tornou ela, disseram-lhe que eu gostava muito de um moço?
- Disseram.
- Disseram a verdade.
Deolindo chegou a ter um ímpeto; ela fê-lo parar só com a ação dos olhos. Em seguida disse que, se lhe abrira a porta, é porque contava que era homem de juízo. Contou-lhe então tudo, as saudades que curtira, as propostas do mascate, as suas recusas, até que um dia, sem saber como, amanhecera gostando dele.
- Pode crer que pensei muito e muito em você. Sinhá Inácia que lhe diga se não chorei muito... Mas o coração mudou... Mudou... Conto-lhe tudo isto, como se estivesse diante do padre, concluiu sorrindo.
Não sorria de escárnio. A expressão das palavras é que era uma mescla de candura e cinismo, de insolência e simplicidade, que desisto de definir melhor. Creio até que insolência e cinismo são mal aplicados. Genoveva não se defendia de um erro ou de um perjúrio; não se defendia de nada; faltava-lhe o padrão moral das ações. O que dizia, em resumo, é que era melhor não ter mudado, dava-se bem com a afeição do Deolindo, a prova é que quis fugir com ele; mas, uma vez que o mascate venceu o marujo, a razão era do mascate, e cumpria declará-lo. Que vos parece? O pobre marujo citava o juramento de despedida, como uma obrigação eterna, diante da qual consentira em não fugir e embarcar: "Juro por Deus que está no céu; a luz me falte na hora da morte". Se embarcou, foi porque ela lhe jurou isso. Com essas palavras é que andou, viajou, esperou e tornou; foram elas que lhe deram a força de viver. Juro por Deus que está no céu; a luz me falte na hora da morte...
- Pois, sim, Deolindo, era verdade. Quando jurei, era verdade. Tanto era verdade que eu queria fugir com você para o sertão. Só Deus sabe se era verdade! Mas vieram outras coisas... Veio este moço e eu comecei a gostar dele...
- Mas a gente jura é para isso mesmo; é para não gostar de mais ninguém...
- Deixa disso, Deolindo. Então você só se lembrou de mim? Deixa de partes...
- A que horas volta José Diogo?
- Não volta hoje.
- Não?
- Não volta; está lá para os lados de Guaratiba com a caixa; deve voltar sexta-feira ou sábado... E por que é que você quer saber? Que mal lhe fez ele?
Pode ser que qualquer outra mulher tivesse igual palavra; poucas lhe dariam uma expressão tão cândida, não de propósito, mas involuntariamente. Vede que estamos aqui muito próximos da natureza. Que mal lhe fez ele? Que mal lhe fez esta pedra que caiu de cima? Qualquer mestre de física lhe explicaria a queda das pedras. Deolindo declarou, com um gesto de desespero, que queria matá-lo. Genoveva olhou para ele com desprezo, sorriu de leve e deu um muxoxo; e, como ele lhe falasse de ingratidão e perjúrio, não pôde disfarçar o pasmo. Que perjúrio? que ingratidão? Já lhe tinha dito e repetia que quando jurou era verdade. Nossa Senhora, que ali estava, em cima da cômoda, sabia se era verdade ou não. Era assim que lhe pagava o que padeceu? E ele que tanto enchia a boca de fidelidade, tinha-se lembrado dela por onde andou?
A resposta dele foi meter a mão no bolso e tirar o pacote que lhe trazia. Ela abriu-o, aventou as bugigangas, uma por uma, e por fim deu com os brincos. Não eram nem poderiam ser ricos; eram mesmo de mau gosto, mas faziam uma vista de todos os diabos. Genoveva pegou deles, contente, deslumbrada, mirou-os por um lado e outro, perto e longe dos olhos, e afinal enfiou-os nas orelhas; depois foi ao espelho de pataca, suspenso na parede, entre a janela e a rótula, para ver o efeito que lhe faziam. Recuou, aproximou-se, voltou a cabeça da direita para a esquerda e da esquerda para a direita.
- Sim, senhor, muito bonitos, disse ela, fazendo uma grande mesura de agradecimento. Onde é que comprou?
Creio que ele não respondeu nada, não teria tempo para isso, porque ela disparou mais duas ou três perguntas, uma atrás da outra, tão confusa estava de receber um mimo a troco de um esquecimento. Confusão de cinco ou quatro minutos; pode ser que dois. Não tardou que tirasse os brincos, e os contemplasse e pusesse na caixinha em cima da mesa redonda que estava no meio da sala. Ele pela sua parte começou a crer que, assim como a perdeu, estando ausente, assim o outro, ausente, podia também perdê-la; e, provavelmente, ela não lhe jurara nada.
- Brincando, brincando, é noite, disse Genoveva.
Com efeito, a noite ia caindo rapidamente. Já não podiam ver o hospital dos Lázaros e mal distinguiam a ilha dos Melões; as mesmas lanchas e canoas, postas em seco, defronte da casa, confundiam-se com a terra e o lodo da praia. Genoveva acendeu uma vela. Depois foi sentar-se na soleira da porta e pediu-lhe que contasse alguma coisa das terras por onde andara. Deolindo recusou a princípio; disse que se ia embora, levantou-se e deu alguns passos na sala. Mas o demônio da esperança mordia e babujava o coração do pobre diabo, e ele voltou a sentar-se, para dizer duas ou três anedotas de bordo. Genoveva escutava com atenção. Interrompidos por uma mulher da vizinhança, que ali veio, Genoveva fê-la sentar-se também para ouvir "as bonitas histórias que o Sr. Deolindo estava contando". Não houve outra apresentação. A grande dama que prolonga a vigília para concluir a leitura de um livro ou de um capítulo, não vive mais intimamente a vida dos personagens do que a antiga amante do marujo vivia as cenas que ele ia contando, tão livremente interessada e presa, como se entre ambos não houvesse mais que uma narração de episódios. Que importa à grande dama o autor do livro? Que importava a esta rapariga o contador dos episódios?
A esperança, entretanto, começava a desampará-lo e ele levantou-se definitivamente para sair. Genoveva não quis deixá-lo sair antes que a amiga visse os brincos, e foi mostrar-lhos com grandes encarecimentos. A outra ficou encantada, elogiou-os muito, perguntou se os comprara em França e pediu a Genoveva que os pusesse.
- Realmente, são muito bonitos.
Quero crer que o próprio marujo concordou com essa opinião. Gostou de os ver, achou que pareciam feitos para ela e, durante alguns segundos, saboreou o prazer exclusivo e superfino de haver dado um bom presente; mas foram só alguns segundos.
Como ele se despedisse, Genoveva acompanhou-o até à porta para lhe agradecer ainda uma vez o mimo, e provavelmente dizer-lhe algumas coisas meigas e inúteis. A amiga, que deixara ficar na sala, apenas lhe ouviu esta palavra: "Deixa disso, Deolindo"; e esta outra do marinheiro: "Você verá." Não pôde ouvir o resto, que não passou de um sussurro.
Deolindo seguiu, praia fora, cabisbaixo e lento, não já o rapaz impetuoso da tarde, mas com um ar velho e triste, ou, para usar outra metáfora de marujo, como um homem "que vai do meio caminho para terra". Genoveva entrou logo depois, alegre e barulhenta. Contou à outra a anedota dos seus amores marítimos, gabou muito o gênio do Deolindo e os seus bonitos modos; a amiga declarou achá-lo grandemente simpático.
- Muito bom rapaz, insistiu Genoveva. Sabe o que ele me disse agora?
- Que foi?
- Que vai matar-se.
- Jesus!
- Qual o quê! Não se mata, não. Deolindo é assim mesmo; diz as coisas, mas não faz. Você verá que não se mata. Coitado, são ciúmes. Mas os brincos são muito engraçados.
- Eu aqui ainda não vi destes.
- Nem eu, concordou Genoveva, examinando-os à luz. Depois guardou-os e convidou a outra a coser. - Vamos coser um bocadinho, quero acabar o meu corpinho azul...
A verdade é que o marinheiro não se matou. No dia seguinte, alguns dos companheiros bateram-lhe no ombro, cumprimentando-o pela noite de almirante, e pediram-lhe notícias de Genoveva, se estava mais bonita, se chorara muito na ausência, etc. Ele respondia a tudo com um sorriso satisfeito e discreto, um sorriso de pessoa que viveu uma grande noite. Parece que teve vergonha da realidade e preferiu mentir.

domingo, 17 de março de 2013

Atividade de Português – 3º Ano (Profª Veronica)

Leia o texto abaixo e responda as questões apresentadas em seguida.

“Clínica de repouso” de Dalton Trevisan
 
Dona Candinha deparou na sala o moço no sofá de veludo e a filha servindo cálice de vinho doce com broinha de fubá mimoso.
Mãezinha, este é o João.
Mais que depressa o tipo de bigodinho foi beijar a mão da velha, que se esquivou à gentileza. O mocinho servia o terceiro cálice, Maria chamou a mãe para a cozinha, pediu-lhe que aceitasse por alguns dias.
Como pensionista?
Não, como hóspede da família. Irmão de uma amiga de infância, sem conhecer ninguém de Curitiba, não podia pagar pensão até conseguir emprego.
Dias mais tarde a velha descobriu que, primeiro, o distinto já estava empregado (colega de repartição de Maria) e, segundo, ainda que dez anos mais moço, era namorado da filha. A situação desmoralizava a velha e comprometia a menina. Dona Candinha discutiu com a filha e depois com o noivo, que achava a seu gosto a combinação.
Sou moço simples, minha senhora. Uma coxinha de frango é o que me basta. Ovo frito na manteiga.
Dona Candinha os surpreendia aos beijos no sofá. A filha saia com o rapaz, voltavam depois da meia-noite. Ás três da manhã a velha acordava com passos furtivos no corredor.
Você põe esse moço na rua. Ou tomo uma providência.
A senhora está louca.
Maria era maior, podia entrar a hora que bem quisesse, a velha estava caduca. Assim que a filha saiu, dona Candinha bateu na porta do hóspede, ainda de pijama azul de seda com bolinha branca:
– Moço, você ganha a vida. Tem como se manter.trate de ir embora.
De volta das compras (delicadezas para o príncipe de bigodinho), a filha insultou dona Candinha aos gritos de velha doida, maníaca, avarenta.
Não vai me dar nem um tostão para esse pilantra. Ai, minha filha, como me arrependo do dia em que noivou.
Maria nem pode responder:
Eu, sim, me arrependo do dia em que a senhora casou.
Sentiu-se afrontada a velhota, com palpitação, tontura, pé frio. Arrastou-se quietinha para a cama, cobriu a cabeça com o lençol:
Apague a luz – ela gemeu – que vou morrer.
Susto tão grande que o rapaz decidiu arrumar a mala. Manhã seguinte a velha pulou cedo, alegrinha espanou os elefantes coloridos de louça. A filha não almoçou e antes de bater a porta:
O João volta ou saio de casa. A vergonha é da senhora.
Dona Candinha fez promessa para as almas do purgatório. Tão aflita, em vez de rezar dia por dia, rematou a novena numa tarde só.
Menina, não se fie de moço com dente de ouro.
– Lembre-se, mãe, a senhora me despediu.
Vá com seu noivo. Depois não se queixe, filha ingrata.
De tanto se agoniar dona Candinha caiu de cama.
A senhora não me ilude. Finge-se doente para me castigar. Com este calor debaixo da coberta.
Muito fraca. Eu suo na cabeça. O pé sempre frio.
Deliciada quando a moça trazia chá com torrada. Terceiro dia, a filha inrompe no quarto, escancara a janela. Introduz o gordo perfumado:
O médico para a senhora.
O doutor examinou-a e, para o esgotamento nervoso, receitou cura de repouso.
A senhora vai por bem – intimou a filha – ou então à força.
Queria o convento das freiras e não o hospital, que lhe recordava o falecido, entrevado na cadeira de rodas. Umas colheradas de canja, cochilou gostosamente. Às duas da tarde, o aposento invadido pela filha, o noivo e um enfermeiro de avental sujo.
É já que vai para a clínica.
Eu vou se não for asilo de louco. Bem longe do doutor Alô.
Um táxi esperava na porta, o noivo sentou-se ao lado do motorista, ela apertada entre a filha e o enfermeiro. Quando viu estava no Asilo Nossa Senhora da Luz, perdida com doida, epilética, alcoólatra.
Nunca entra sol no pavilhão, a umidade escorria da parede, o chão de cimento. De noite o maldito olho amarelo sempre aceso no fio manchado de mosca.
Quem reclama – era o sistema do doutor alô – ganha choque!
Ao menor protesto ou queixume:
Olhe o choque, melindrosa! Olhe a injeção na espinha! Olhe a insulina na veia!
Um banheiro só e,depois esperar na fila, aquela imundície no chão e na parede. A louquinha auxiliava a servente que, essa, fazia de enfermeira. Intragável o feijão com arroz, dona Candinha sustentava- se a chá de mate e biscoito duro. Engolia com esforço o caldo ralo de repolho.
Vinte e dois dias depois recebeu a visita da filha, o noivo fumava na porta.
A senhora fazendo greve de fome?
Na minha casa o arroz é escorrido, o feijão lavado.
Só de braba não come.
Daí a tortura da sede. Servia-se da torneira no banheiro, não é que uma possessa vomitou na pia? Foi encher o copo, deu com tamanho horror. Embora lavada a pia, guardou a impressão e sofria a sede.
Doidinha eu sou – disse uma das mansas – Meu lugar é aqui. Mas a senhora fazendo o quê?
Uma lunática oferecia-lhe bolacha e fruta. Mandou bilhete na sua letra caprichada, a filha só apareceu domingo seguinte.
A senhora não está boa. Nem penteia o cabelo. Não cumprimenta o doutor Alô.
Essa ingratidão não posso aceitar – e abafava o soluço no pavor do choque – Não sou maluca e sei me mandar.
Prove.
Com o túmulo de seu pai. Já pintado de azul.
Instalado na casa, o noivo regalava-se com ovo frito na manteiga,coxinha gorda de frango.
Quem não come – advertia a servente – vai para o choque!
Dona Candinha encheu-se de coragem e choramingou para a freira superiora que não tomava sol, sofria de reumatismo, com a gritaria das furiosas que podia dormir?
Ao cruzar a enfermaria, a freira chamou uma das bobas
Você é nova aqui?
Entrei ontem , sim senhora.
Se tiver alguma queixa, fale com dona Candinha. – e batendo palmas de tanta graça. – é a palhaça do circo.
A servente largava o balde e o enxergão, sem lavar as mãos aplicava insulina na veia de uma possessa. Dona Candinha fingia tossir e cuspia a pílula escondida no buraco do dente.
Chorando de manhã ao se lembrar do tempo feliz com o finado. À noite, chorava outra vez: menina tão amorosa, hoje feroz inimiga. Não doía ter sido internada. – culpa sua não sair da cama – Mas sabendo o que sofria, a moça não a tirasse dali.
Minha própria filha? Estalou baixinho a língua ressequida. – que não me acudiu na maior precisão? Surpreendida rondando o portão, confiscaram-lhe a roupa, agora em camisola imunda e chinelo de pelúcia. ?Sem se aquecer ao sol, sobrevivendo aos golinhos de chá frio e bolacha Maria. Tão fraca nem podia ler, as letras embaralhadas mesmo de óculo.
Olhe essa mulher, doutor – era a filha, vestido preto de cetim, lábio de púrpura, pulseira prateada. –domingo de sol, uma pessoa deitada? O dia inteiro chorando e se queixando. Aqui não falta nada, que mais ela quer?
Vá-se embora – respondeu docemente a velha. Desapareça de minha vista. Você mais o dente de ouro.
De dia o rádio ligado a todo volume. À noite, a gritaria furiosa das lunáticas. Sentadinha na cama, distrai-se a velha a espiar uma nesga de céu. Com paciência, amansa uma mosca nas grades, que vem comer na sua mão arrepiada de cócegas. Há três dias, afeiçoada à velhinha, não foge a mosca por entre as grades da janela.


Questões:
 
1)    O conto “Clínica de repouso” de Dalton Trevisan retrata uma família em conflito. Qual é a origem do conflito?

2)    Os desentendimentos eram constantes entre mãe e filha. O que fez a filha para se livrar dos atritos?

3)    O doutor Alô diagnosticou alguma doença em dona Candinha? Qual?

4)    Como é descrita a clínica de repouso?

5)    Vários fatores contribuíram para o falecimento de dona Candinha. Cite alguns.

6)    Dona Candinha mereceu o tratamento que lhe fora dado pela filha e o genro?
 
Análise da narrativa. Descreva:

1)    O narrador

2)    O tempo

3)    O espaço

4)    As personagens.
 

Formato de entrega: Respostas manuscritas em folha de papel almaço.

Data de entrega: Até 25 de Março de 2013.